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Uma escultura para Santo Tirso, 2001
Pedro Cabrita Reis
Tijolo cerâmico e betão
Pedro Cabrita Reis surge na década de oitenta como um artista insubmisso a qualquer disciplina, técnica ou material. Sendo atualmente um dos mais reputados artistas nacionais contemporâneos apresenta uma linguagem poética muito própria, de forte pendor antropológico. As suas criações começaram por desenvolver uma particular sensibilidade para a ocupação do espaço, aproximando-se frequentemente do conceito de instalação, onde fragmentos domésticos irrompem em estruturas mais ou menos abstratas.
A utilização de um leque muito variado de materiais de grande simplicidade (madeira, vidro, plástico, acrílico, borracha, gesso, metal, linho, tela e feltro) e a combinação de memórias de gestos e ações da vida de todos os dias, acentuam o forte ímpeto metafórico que as suas criações sempre evidenciam. Acresce que o uso recorrente de jogos de luz e sombra ou de opacidade e transparência transportam consigo o peso de meditações densas sobre a existência, isto é, sobre a vida e a morte. Aliás, o próprio artista já afirmou que a melhor definição do seu estatuto é a de um “produtor de memória”, o que reitera a asserção de que as suas obras possam ser vistas como momentos de recolhimento essencial à transitoriedade inevitável da vida.
Para o 6º Simpósio Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso, Cabrita Reis, utilizando materiais e métodos de trabalho próprios da construção civil, edificou um pequeno habitáculo, deixando à vista, sem qualquer revestimento, os ordinários tijolos que a constituem e que não permitem dúvidas em relação à natureza precária e à finalidade pseudo-utilitária da obra, que contrasta com o resto das esculturas situadas na área envolvente. Contrariamente às obras minimalistas, cujas composições ficariam num plano não-referencial, nesta escultura a insinuação do caixilho de uma porta (embora entaipada) confirmam o seu caráter de casebre ou cabana, isto é, mostram a natureza bastarda do construído. Porém, todo o vanguardismo desta proposta assenta na sua qualidade de posicionar o espectador perante um duplo- impasse: por um lado o seu caráter inacabado e/ou moribundo (a lembrar muita construção entaipada pelo desalojamento prolongado), por outro, aguça a curiosidade por aquilo que possa esconder no seu interior.
17 anos depois…
Em 2001 o saudoso Alberto Carneiro convidou-me para participar no seu projecto dos simpósios de escultura em Santo Tirso. Ao Alberto não se podia dizer que não. O seu entusiasmo, a sua energia contagiante, o inabalável bom humor e o rigor empenhado do seu pensamento e acção eram, mais do que características pessoais, um modo pleno de estar na vida com os outros, um lugar interior de onde irrompia a força e a inteligência da sua Arte.
Com grande prazer fiz-lhe esta peça “Uma escultura para Santo Tirso” que, impecavelmente realizada pelos técnicos camarários, segundo os meus desenhos, e no local por mim escolhido, perto da cascata, poderoso e belo “objecto” na cidade que confere ao lugar uma especial magia.
“Uma escultura para Santo Tirso” veio do Sul para o Norte. Deparei-me com ela durante um desses passeios de moto que gosto de fazer pelas estradas pequenas, longe da velocidade monocórdica das auto-estradas. Vi-a numa planície qualquer no Alentejo, ao fim de um dia tórrido. Era um casinhoto tosco feito com tijolos, afastado da estrada, no meio de uma planura seca, quase sem árvores. Albergaria provavelmente um motor de rega, não consegui chegar perto. O arame farpado que cercava o terreno afastou-me.
Esbocei, de longe, um rápido desenho num pedaço de papel que viria a perder durante essa viagem mas com a foto que igualmente fizera pude, mais tarde, já no atelier em Lisboa, voltar a desenhar o projecto e mandá-lo ao Alberto que, dia sim dia não, me telefonava para saber “… como estava a coisa…”.
As medidas, calculei-as “a olho”, e a escultura que começara numa viagem de moto pelo Alentejo, veio ao encontro do seu lugar próprio em Santo Tirso. Contudo, nunca cheguei nessa altura a terminar a obra. No lugar onde hoje se encontra e em conversa com o Alberto, ficou combinado que mais tarde passaria por Santo Tirso para completar o trabalho.
Passaram-se 17 anos, o Alberto já cá não está para irmos fazer a “patuscada” combinada para celebrar a escultura. Terei agora que a fazer com outros amigos para celebrarmos o Alberto.
De uma forma divertida e algo carinhosa “Uma escultura para Santo Tirso” é conhecida localmente como “A Casa do Motor”, nome popular que (afinal, haverá coincidências, destinos? talvez… nunca saberemos.), vai ao encontro da função original do modelo que está na sua origem o qual imagino que ainda possa estar nesse mesmo lugar do Alentejo onde o vi e aonde nunca mais voltei.
Agora que, 17 anos depois, a Obra está finalmente terminada talvez volte a fazer essa viagem um dia destes. Poderei ver qual é melhor, se o Modelo, se a Obra.
Todas as obras de arte são testemunho da passagem do tempo. A “pele” de “Uma escultura para Santo Tirso” revela agora a erosão, que essa passagem deixa como marca e, se no nosso corpo se vão lendo as marcas dessa passagem, ao menos da arte, sabemos que perdurará muito para além do nosso breve e fugidio tempo.
Pedro Cabrita Reis
Lisboa, 26.06.2018