RELIGAR

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA: DESLOCAÇÕES #02

4 MAI – 26 MAI

“Religar” intitula a segunda edição da residência artística “Deslocações”, uma colaboração entre o Museu Municipal Abade Pedrosa/ Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso e a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Nesta edição os estudantes da unidade curricular de Práticas da Escultura foram desafiados a eleger, do acervo arqueológico Abade Pedrosa, um artefacto com carácter e vocação espiritual para a realização de um projeto escultórico que dialogue com as suas propriedades formais, simbólicas e contextuais. Este enfoque no vestígio arqueológico procura dirigir a nossa atenção para um mundo arcaico de inesgotável conhecimento que escapa às emergências do dia-a-dia e simultaneamente gerar um ato de auto-decifração no sujeito, pois quando nos colocamos perante um artefacto e a sua espessura histórica recebemos dele um Eu mais vasto.

Já tudo começou para nós também

Qualquer artefacto mágico, sagrado ou de vocação espiritual possui uma natureza geneticamente plural: ele faz colidir um conjunto de qualidades formais com uma intencionalidade ampla e descontínua dentro de um sistema de crença que é necessário compreender, desde sacrifícios, festas, transes, ritos de iniciação ou funerários, orações, música, entre outros. Dificilmente conseguimos abeirar a essência de um objecto desta natureza ignorando a sua proveniência ou contexto matricial. Será sempre necessária uma deslocação.Para esta segunda edição da residência artística – Deslocações – os estudantes da unidade curricular Práticas da Escultura da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto foram desafiados a eleger um objecto de carácter ou vocação espiritual do acervo arqueológico Abade Pedrosa para iniciarem um aturado processo de estudo com vista à realização de uma escultura capaz de dialogar com esse vestígio escolhido. Tratou-se tão só de propor a construção de um diálogo, uma conversa íntima entre formas, densidades, cores, escalas, pesos, símbolos, matérias, ideias. Tratou-se tão só de edificar uma relação. Ainda antes de começar estávamos avisados (confirmamos agora) para o problema crucial desta tarefa: qualquer vestígio arqueológico eleito nunca poderá ser considerado apenas enquanto uma mera janela para outro tempo mais ou menos imemoriável ignorando a sua potentíssima capacidade especular de nos devolver inesperadamente o nosso reflexo. Uma ruína é sempre uma janela mas também um espelho. Esta consciência permitiu, a cada estudante, nas suas múltiplas revisitações aos objectos, a entrada dentro deles, não nas coisas mas literalmente dentro dos próprios, num processo de auto decifração.

Pois quando nos dirigimos aos objectos e à sua espessura histórica, recebemos deles um Eu mais vasto, mais profundo e lúcido. Debruçarmo-nos sobre um artefacto sagrado separando-o da sua situação primordial ou ocultando perante ele os nossos desejos é uma ingenuidade quando não uma preversão.Advertidos e vigilantes quisemos nesta residência trazer para cima da mesa de trabalho uma dupla preocupação.

1º preocupação — reconhecer que nas raízes mais arcaicas podemos encontrar o fogo menos-fátuo;

2º preocupação — principiar nesse fogo inicial uma procura de nós, “para escapar através dos séculos à mecânica das actualidades; para chegar até aos meus próprios pensamentos”*.

Assim, com encontros semanais nos últimos dois meses, cada estudante elaborou um trajecto de experiências íntimas em desenho e escultura de pequena dimensão encetando uma circunspecção irrequieta e desejante sobre e a partir do objecto escolhido para chegar aos resultados que agora se dão em presença nesta exposição. Cada caminho produziu um diálogo, uma alternância de vozes (discursos) intemporais que se relacionam por esse imenso indecifrável “vazio ligante”.

Samuel J M Silva