Algures no futuro, a espécie humana está à beira da extinção, devido ao desenvolvimento de bactérias multi-resistentes, às alterações climáticas e a conflitos armados entre nações. Como recurso de sobrevivência, a tecnologia torna-se endémica à vida humana e tende a tomar o lugar do livre arbítrio. Toda a delimitação, controlo e posse de território é proibida. A ideia de nação é abolida em favor de um Estado totalitário e universal. Nesse Estado, um Sistema gerido através de algoritmos determina a função, as opções e as ações de cada indivíduo, controlando toda a sua existência social com vista ao prolongamento da vida humana, à sua reprodução e à manutenção do seu domínio sobre o planeta Terra.
Embora os pensamentos e emoções sejam também induzidos e manipulados pelo Sistema Algorítmico, o conhecimento da mente e a evolução tecnológica ainda não permitem um controlo absoluto sobre essa dimensão do indivíduo. É aí, ainda, que reside uma centelha de liberdade.
Para controlar essa potencial imprevisibilidade, o Sistema mantém um controlo apertado sobre todos os indivíduos, classificando aqueles que colocam em causa as orientações algorítmicas como Instáveis. Esses são submetidos a uma estreita vigilância e a vários procedimentos de manipulação mental. Após esse tratamento, caso persistam nas dúvidas que colocam, são convidados a desligar pacificamente do Sistema.
Para prevenir qualquer tipo de união entre os indivíduos que possa potenciar futuras rebeliões, está em curso um processo de abolição das relações emocionais e sexuais. Todos os novos embriões humanos serão obtidos em laboratório e a sua gestação será totalmente feita fora de útero, em incubadora.
Bel é uma mulher escondida dentro da vitrine onde vive. Funcionária de nível médio-alto, trabalha no departamento de triagem dos Instáveis para a saída. A aparência não lhe importa, mas é na aparência que desenha o equilíbrio que lhe permite continuar a viver. Está, aparentemente, bem.
No passado, viveu vários tipos de violência e nunca sublimou esse sofrimento nem fez dele força criativa. Alojou-se dentro dela uma dor, um incómodo, uma voz que ela procura calar.
O Sistema foi inicialmente, para ela, um porto seguro. Ajudou a construí-lo como uma trabalhadora braçal que não quer conhecer o desenho inteiro da obra. Não lhe interessa a sua arquitetura porque, intimamente, receia as suas fragilidades. Prefere não pensar que o “teto” pode ruir, mente-se a si própria.
Porque o Sistema ainda não controla totalmente a complexidade emocional dos indivíduos, não foi possível anestesiar completamente as suas emoções e a sua capacidade de empatia para com os outros. Em grande parte, é dessa capacidade que advêm os sofrimentos do passado.
Assim, ainda que discretamente, ela vive em permanente contradição psicológica na função que desempenha. Foi também esse um dos objetivos para a sua colocação naquele lugar: de tanto exercer a indiferença pelo outro, haveria de ganhá-la para si. Porém, na vigilância de que foi alvo, foram detetadas várias contradições, dúvidas e inconsistências. Essa tentativa de manipulação aplicada a Bel tinha falhado.
É nesse contexto de profunda infelicidade e solidão que Bel encontra Spes. Ele vem ter com ela num momento que em que ela está só, para a informar de que será o seu novo colega e acertar alguns pormenores sobre o trabalho.
Sem que eles compreendam porquê, o Sistema tem um corte geral e as suas ligações ao CEO (Controlo E Ordem) estão inativas temporariamente. Ambos percecionam essa liberdade, o que despoleta neles a capacidade humana de empatia e as pulsões sexuais. Essa experiência desperta neles emoções que irão desencadear diferentes sentimentos.
Quando o corte do Sistema é resolvido e ambos voltam a ser controlados pelo CEO, Spes leva Bel, adormecida, para a sua habitação.
A partir dessa experiência, o inconsciente de Bel começa a revelar-se-lhe de forma mais forte e incisiva. Todas as noites ela tem sonhos violentos e estranhos, que envolvem a libertação das pulsões aprisionadas. Consciente, ela não quer aceitar esse tumulto dentro dela e procura continuar com o seu quotidiano normal, dizendo para si própria que esses sonhos são passageiros e tentando acreditar que o relacionamento com Spes foi também um sonho. Porém, ela está grávida e prepara-se para fazer um aborto. Todas essas contradições levam-na a uma espécie de loucura em que deixa de destrinçar a verdade da mentira. Só os sonhos são reais, como representações da sua verdade inconsciente.
Bel é incapaz de tomar uma decisão para a sua vida. Mais uma vez, deixa-se conduzir pelo Sistema. Thyr, seu superior, convence-a a desligar. Quando Bel sai, é a primeira vez que olha para si própria e precisa de ser honesta para consigo.
Spes é um funcionário do Sistema mandatado para vigiar e pôr à prova os funcionários assinalados pela demonstração de dúvidas acerca do paradigma vigente.
Foi criado e educado por um homem sábio, que lhe forneceu segurança e conhecimento. Possui um conhecimento profundo sobre a psicologia e o comportamento do ser humano, validado pela sua experiência. Ao contrário de Bel, Spes cumpre as suas funções tendo sempre em vista a arquitetura global do sistema, para a qual ele quer contribuir.
O processo de trabalho de Spes passa por se dirigir ao indivíduo vigiado e, numa conversa, confrontá-lo com as suas dúvidas. Normalmente, através de uma manipulação emocional com o sentimento de culpa, o isolamento e o enfraquecimento psicológico do indivíduo, este acaba por desejar a libertação e solicitar a sua saída do Sistema de forma pacífica.
Com Bel, todo o processo estava destinado a ser o habitual, mas a quebra momentânea do sistema e o relacionamento que ambos tiveram causa-lhe um profundo transtorno emocional. Ele descobre que existe uma capacidade humana negligenciada pelo Sistema que pode ser a chave para a prossecução da sobrevivência da espécie: a empatia.
Para estar com ela, Spes faz-se passar por Instável, mas, na entrevista, a comunicação entre ambos é completamente toldada pela emoção descontrolada.
Spes decide então dirigir-se ao seu superior, Thyr, para desta vez o confrontar a ele com a questão de quem controla o sistema algorítmico e, se ninguém assume esse controlo e este é totalmente tecnológico, em que é que nos estaremos a transformar. Thyr, preconizando e defendendo o paradigma vigente, que permitiu a abolição das guerras e a sobrevivência face às epidemias, nega a importância destas questões e qualquer via alternativa. Spes sai do escritório convencido de que a espécie humana não poderá sobreviver se não resgatar a sua capacidade de empatia. Está determinado a encontrar de novo Bel e iniciar um processo de mudança, dentro do próprio Sistema.
*Texto escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990.